A petulância de um mendigo
Eu estava esperando o ônibus, na parada do Santana, ali no Marcado Público. Durante aqueles poucos minutos de aguardo pela condução, que pareciam infindáveis, a ansiedade tomou conta de mim. Consultava o meu relógio, olhava para o painel que mostravam as horas e a temperatura naquele terminal, contava as lajotas do piso e nenhuma distração fazia o tempo passar. Não lembro qual, mas comecei a bater o pé ou balançar a perna em decorrência da angústia pela espera do veículo. Minha aflição teve fim quando vi surgir, lá na Júlio, o letreiro luminoso escrito Santana. Já passava a mão pelos bolsos para sacar o cartão TRI, quando vi um homem interpelando o passageiro à minha frente. Pedia dinheiro para comprar comida. Não recebendo ajuda da mulher, o mendigo veio em mim.– O senhor poderia me ajudar com um dinheiro para comprar comida? O senhor mesmo pode ir ali e pagar para mim. Não é para alimentar vícios, moço, é para matar a fome.
Para quem não sabe, uns três metros adiante da parada do Santana tem uma carrocinha de cachorro quente. Foi para ela que o pedinte apontou quando disse “pode ir ali e pagar para mim”. Enquanto o faminto esfarrapado tentava me convencer de pagar o lanche para ele, a fila andou e eu já estava na porta do ônibus.
– Então? – perguntou ele – é um e cinqüenta.
Eu recém tinha saído do La Persona, um magnífico restaurante ali da esquina da Andradas com a Ladeira. Estava com a barriga cheia. E não é figura de linguagem. Era cheia mesmo. Não almoço nesse estabelecimento todos os dias porque, em um mês, correria o risco de não passar mais pela roleta do ônibus. Toda vez que vou nesse restaurante, lá na ponta do bifê, aquele que penso que é o dono do local, já me espera com uma fatia generosa de matambre recheado. Muitas vezes, confesso que tenho vergonha dos olhares das pessoas diante do meu “prato de estivador”.
Essa minha satisfação por ter cometido o pecado da gula, me fez pensar “puxa, comi tão bem, estou farto e satisfeito com meu almoço e esse cara que não se sabe há quantos dias não come”. “Que falta vai me fazer um e cinqüenta”, ainda pensei. Assim saí da fila e fui pagar a comida do pobre infeliz.
– Pode preparar um com lingüiça, que ele vai pagar – anunciou o mendigo para o “preparador de hot dogs” – é dois e cinqüenta – informou-me o pobre, esfregando as mãos e mostrando os escassos dentes que lhe restavam na boca.
– Eeeeii, peraí. Tu disseste que era um e cinqüenta...
– Ah não, eu quero esse.
– Então, NÃO.
– Aaahhh mas, como assim? Tu disse que ia me dar, cara.
Já estava decidido. Não pagaria mais o lanche para o vagabundo. Não pelo preço, afinal, também não me custava um pila a mais. O problema foi a audácia com a qual ele conduziu a situação. Ah, queria o pão com linguiça... aposto que ele não sabe nem que a linguiça, coitada, perdeu a trema. Pois, depois de eu muito negar, ele ainda recuou, aceitando o cachorro simples, com salsicha, mas eu tinha decidido que não pagaria. E não paguei. Ele se foi, resmungando. O dono da carrocinha ainda comentou comigo sobre o atrevimento do miserável antes que eu voltasse para a parada. Esse tem que morrer de fome, pensei. E pior que já vi muitas pessoas utilizando a palavra humilde como sinônimo de pobre.
Enfim, quando girei os calcanhares em direção ao ônibus, vi somente o espaço vazio. E, em seguida, uma longa fila que tinha se formado. Naturalmente, era para minha ansiedade pela espera da condução voltar. Voltar e crescer. Até porque o atraso, então, era bem maior. Mas, não. Não fiquei nenhum pouco ansioso. Estava indignado. Reclamava sem parar, em pensamento. A aflição pela vagareza do relógio deu lugar a cólera pela petulância do mendigo. Nem notei o tempo passar. Quando vi o ônibus estava encostando na parada. E, dessa vez, sem que um miserável viesse atrapalhar meu embarque.
Um comentário:
Só uma observação... Onde estou nessa história???
Mayara
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