A lenda do escravo Josino
A extensa escadaria e as altivas torres ainda não existiam. No alto da rua do Cotovelo (atual Riachuelo), a igreja das Dores era apenas um canteiro de obras naqueles dias em que Josino trabalhava. O escravo de propriedade do comerciante Domingos José Lopes fora cedido à Irmandade Nossa Senhora das Dores para ajudar na construção do templo que hoje é o mais antigo de Porto Alegre.
Algum tempo após o início da obra, foi dada a falta de material de construção. O sumiço se tornou constante, mas não conseguiram descobrir quem era malfeitor. Entre as discussões em torno do assunto, levantaram o nome de Josino. A hipótese ganhou defensores e logo a culpa recaiu, de fato, sobre o escravo.

Poucos meses depois da morte de Josino, uma das torres, em fase final de construção, desabou. Quem ouviu as palavras do escravo, ao saber da notícia, lembrou da afirmação. A lenda estava criada.
Ao longo dos anos, a história sofreu diversas mudanças. A versão acima é baseada num texto de Apolinário Porto Alegre, do início do século passado. Outra variação bastante conhecida foi contada por Afonso Morais, em Torres Malditas (Editora do Globo, 1931). Na obra, o autor refere-se, não em materiais de construção, e sim a um colar que adornava a imagem de Nossa Senhora das Dores como o objeto do roubo. Garante ter conhecido o verdadeiro ladrão, que roubou o acessório para presentear a sua noiva. O restante da história é o mesmo: o escravo é acusado do crime e condenado à forca.
A demora para a conclusão da obra (a pedra fundamental foi lançada em 1807 e a construção foi finalizada em 1904) deu crédito à lenda e levou o episódio a essa proporção. O site das Dores lembra que já em 1900 o Correio do Povo, ao anunciar a proximidade da conclusão da obra, afirmara:
– [Que se desfazia] a lenda da crendice ignara que a reputada obra era impraticável, em virtude de suposta praga rogada por um desgraçado que, diz-se, foi por estas vizinhanças justiçado por delito que não cometera.
É dito, inclusive, que a condenação injusta de Josino teria motivado Dom Pedro II a abolir a pena de morte no Império. Sérgio da Costa Franco, no Porto Alegre: Guia Histórico (Ufrgs, 2006), desmistifica parte da crendice popular, revelando, inclusive, o nome verdadeiro do escravo.
– Em estudo específico sobre sobre os enforcados de Porto Alegre, verificamos que o sentenciado chamava-se Manoel, pertencia a Fermino Pereira Soares, cunhado de Domingo José Lopes, em cuja casa estava hospedado. Sua execução aconteceu em 9 de novembro de 1854.
História e lenda se misturam. O escravo Manoel, por muito chamado de Josino, talvez não quisesse entrar para a história. Involuntariamente, portanto, tornou-se personagem celebre de Porto Alegre a custo de injustiça e da sua própria vida.